Uma paródia da poesia

Foi Philip Rieff quem disse que a psicanálise parodia as tradições da hermenêutica religiosa; e sua tirada continua válida e provocadora. Mas a psicanálise também é uma paródia redutora da poesia, o que talvez seja outra maneira de dizer que a poesia sempre foi uma espécie transcendental de psicanálise, num modo marcado pelos padrões de transferência e contra-transferência, ou da influência e suas angústias.

Freud falava a verdade ao admitir, repetidamente, que os poetas estavam lá antes dele. Lacan, com certeza, em seus raros melhores momentos, é capaz de nos dar o que os poetas nos dão mais plena e livremente. Os sonhos, como a psicanálise, parodiam e reduzem poemas, se se for tratar deles, seguindo Freud, em termos de conteúdo latente ou "sentido". Mas, em seu conteúdo manifesto, em suas imagens e suas tramas, os sonhos compartilham com a poesia elementos que desafiam qualquer redução.

As reduções de Freud lhe eram necessárias, tendo em vista que sua busca era de caráter científico e terapêutico. Enquanto adivinho terapêutico dos sonhos, ele está acima de qualquer rival, antigo ou moderno, e isso mais por conta do que a despeito de sua excessiva confiança como intérprete. Mas sonhos não são poemas, nem ao menos maus poemas; e Freud era astuto demais para gastar suas consideráveis energias reduzindo poemas. Um ensaísta como Rycroft manifesta uma nostalgia honorável ao tratar dos sonhos com respeito literário bem maior do que o do próprio Freud. Seria mais interessante aceitar a limitação voluntária do criador da psicanálise e procurar compreender que espécie de ato representava esse desrespeito pragmático pelos sonhos.

Para além de um tal entendimento, poderia surgir uma consciência nova das múltiplas formas a que convergem a poesia e a psicanálise, ainda que diferindo como modalidades de interpretação. Se Freud encontrou seus pares nos poetas, isso se deu por conta da capacidade interpretativa desses, mas seus objetivos, afinal, não eram compatíveis com as ambições mais elevadas da poesia, como ele mesmo veio a compreender.

Harold Bloom é professor de literatura nas universidades de Yale e Nova York; é autor, entre outros, de "A Angústia da Influência" (Imago) e "O Cânone Ocidental" (Objetiva). Tradução de Arthur Nestrovski.

Publicado na "Folha de São Paulo

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